quinta-feira, 5 de novembro de 2020

ARTIGO

Dia Nacional da Cultura: a pandemia e a ressignificação do fazer artístico

 


A experiência artística, por excelência, reivindica a reunião de pessoas, instaurando, por meio das trocas simbólicas ali estabelecidas, lugar aberto às narrativas. Em 2020, vivenciamos o abrupto desaparecimento destes lugares de partilha. Sabemos que a sociedade levará algum tempo para elaborar coletivamente o significado deste prejuízo em nossa experiência social. Atribuir novos significados a este momento histórico passa pela transformação do olhar da sociedade sobre a/o artista – sujeitas/os devotas/os da integralidade da vida sensorial humana – que, durante a pandemia, não somente deixaram de contar histórias, mas, com seus olhos sensíveis ao devir, viram obliterar as milhares de novas histórias que seriam instauradas a partir da sua relação com a plateia. Neste Dia Nacional da Cultura – 5 de novembro – a reflexão se faz necessária.

A urgência da demanda pública impôs a gestoras e gestores a desafiadora missão de, em meio à crise, dar norte e perspectiva na manutenção dos direitos primordiais de cidadãs e cidadãos em todo o Brasil. Direitos estes que perpassam pela Cultura de maneira estrutural. Desde o março, a Fundação Cultural do Estado da Bahia atuou em articulação com entes governamentais e sociedade civil para mitigar os efeitos da crise pandêmica em meio ao setor artístico. Dentre as movimentações mais imediatas, destacamos a distribuição de cestas básicas viabilizadas pela direção da Funceb junto a coletivos artísticos em Salvador, a confecção de máscaras pelo Centro Técnico do Teatro Castro Alves (TCA) para distribuição prioritária a artistas e servidores da casa, além da articulação com organismos da micropolítica em prol da permanência e subsistência de artistas circenses no interior do estado.   

Paralelamente, apontamos também a concomitante reestruturação do Planejamento Estratégico 2020 desta Fundação, com a transposição dos projetos para as plataformas virtuais. Neste rol, destacamos a 8ª edição do edital Calendário das Artes, lançado de forma totalmente virtual, e que recebeu 1.788 propostas inscritas oriundas dos seis macroterritórios do estado da Bahia, premiando 200 propostas. Nesta mesma linha, apresentamos os solos de concertos via web da Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA); desenvolvemos aulas virtuais de dança, intercâmbios com coletivos culturais e aulões públicos em formato de lives pelo Balé Teatro Castro Alves (BTCA); acontece até dezembro o projeto “Voltando aos Palcos”, com shows exclusivos transmitidos online e pela TVE, da Sala do Coro do TCA; estamos em fase de seleção de produções em videodança no âmbito do projeto Dança na Tela e Dança para a Infância; homenageamos o cinquentenário de morte de Walter Silveira por meio da Cinemateca da Bahia; está em curso a produção do Catálogo de Profissionais do Audiovisual Baiano através da Bahia Film Commission; estamos institucionalizando o Projeto Político Pedagógico da Escola de Dança da Funceb, numa perspectiva de ampla participação, e implantando o sistema de gestão do CFA.

Visando a antecipação dos procedimentos preliminares para a correta implementação da Lei Aldir Blanc – a Lei Emergencial da Cultura -, a Funceb adotou providências cooperativas para estruturar os mecanismos de acesso dos recursos por quem é de direito. Nesta direção, realizamos oitivas setorializadas com o campo das Artes na Bahia, através de reuniões com entidades, coletivos e grupos organizados da sociedade civil, com o intuito de ouvir proposições e constituir um diagnóstico da realidade enfrentada pelos agentes atuantes nos diferentes elos da cadeia das Artes no estado. Para ampliar esta comunicação com a sociedade civil, realizamos durante o mês de julho os Diálogos Virtuais das Artes, também para tratar e recolher sugestões sobre a aplicação da Lei Aldir Blanc reunindo, no primeiro dos oito encontros, mais de 370 agentes culturais de diferentes regiões da Bahia.

Com o advento da regulamentação da Lei, a Funceb atuou para investigar a expectativa da comunidade cultural sobre os modelos emergenciais de aplicação de recursos financeiros de suporte aos artistas e agentes do campo. Mapeamos iniciativas de todo o país dentro do perfil de ações voltadas para a emergência da pandemia, bem como foram observadas iniciativas no campo privado e que se constituem como relevantes no fomento da Cultura no Brasil. Estes esforços se materializaram no mês de setembro, com o lançamento de dois editais cujos objetos de premiação são digitais: o Prêmio das Artes Jorge Portugal e o Prêmio de Exibição de Audiovisual que, juntos, perfazem um valor inicial de R$ 25 milhões para a aplicação nas Artes na Bahia. Em um esforço revisionário corajoso, considerado o contexto dos arranjos em políticas públicas no Brasil, ambas as premiações garantem recursos para proponentes autodeclarados negros, mulher, transgênero, travesti, ou que residam no interior. Foram mais de 2.900 inscrições de todo estado e 380 propostas dos diferentes territórios de identidade serão premiadas.

A cena artística do presente foi transposta para a modalidade virtual, mas as estratégias que se desenham hoje apontam para caminhos já percorridos pelos movimentos sociais brasileiros, cujos integrantes disputam com o próprio corpo o espaço das contra narrativas. Este Dia Nacional da Cultura – 5 de novembro - é um chamado a toda sociedade brasileira – sobretudo para aquelas e aqueles que vêm conseguindo reconfigurar virtualmente suas atividades produtivas – para materializar o compromisso com o estado de sobrevivência deste “Outro” artista. A resistência dos setores artísticos às investidas de governos retrógrados não pode mais ser assunto estrito àqueles implicados nesta cadeia produtiva. Esse comprometimento – que é mais potente quando feito coletivamente, mas representa sobretudo um ato intransferível de exercício da cidadania – passa, inicialmente, pelo interesse da gestão pública e pela apropriação dos instrumentos de luta política.

Importa ainda dar movimento às nossas próprias posições pessoais no intuito de demandar o reconhecimento desta categoria como trabalhadores que são. Esta voz uníssona deve, enfim, fazer ecoar o cumprimento do pacto federativo que articula a sociedade em torno de um sistema nacional de cultura que, a depender dos nossos esforços, terá sua natureza renovada pelo princípio de garantia dos direitos fundamentais aos agentes culturais do Brasil. Um dia para refletir, resistir e – sim - celebrar.


Renata Dias - Diretora Geral da Fundação Cultural do Estado (Funceb/SecultBA)

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