terça-feira, 16 de janeiro de 2024

DESAFIOS POLÍTICO-CULTURAIS PARA 2024


Sede do antigo Ministério da Cultura na Esplanada dos Ministérios| Foto: Reprodução/Copyright © 2024, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.


Remontar todo o destruído e, simultaneamente, organizar as novas demandas está sendo uma empreitada complexa, trabalhosa, delicada e nada simples.

 

Por Antonio Albino Canelas Rubim*


O recorrente desafio da sociedade brasileira se chama democracia. Não se trata apenas de superar a vida pendular da democracia no país, nem de bloquear o recurso aos golpes, de variados tipos, quando a democracia avança e possibilita direitos para a maioria da população. Trata-se de uma transformação democrática que instale condições para uma democracia ampliada, que envolva estado e sociedade, enfrente desigualdades, distribua renda, respeite a diversidade social e cultural, supere carências e privilégios, que marcam a ferro e fogo o Brasil. Enfim, democratize radicalmente o estado e a sociedade nacionais. Os desafios no campo da cultura em 2024 devem ser inscritos em tal horizonte, buscando viver a democracia cultural e desenvolver a cultura democrática.


A paradoxal conjuntura político-cultural de 2023

 

O país viveu paradoxal conjuntura político-cultural em 2023. Ela combinou, de modo complexo e desafiador, a recriação do ministério inexistente, destroçado e vilipendiado desde o golpe de 2016, com o maior orçamento já existente para a cultura, resultante de lutas e improváveis vitórias, com a conquista das leis Aldir Blanc I, Paulo Gustavo e Aldir Blanc II, ainda na gestão passada, caracterizada por intensa guerra cultural. 

 

A recriação do Ministério da Cultura, extinto em 2019, implica também em reanimar seus organismos, submetidos ao desmantelamento brutal, com perdas de institucionalidade, estrutura, organização, orçamento, pessoal, normas, rotinas etc. Muitos de seus órgãos foram submetidos a uma sabotagem interna, realizada pelos próprios dirigentes impostos. Talvez o exemplo mais escandaloso tenha sido a Fundação Cultural Palmares. Ameaças, perseguições, censura, corrupções, destruições se tornaram acontecimentos cotidianos na secretaria especial, que tomou o lugar do ministério. A rotatividade de seus dirigentes foi intensa. Algo como seis dirigentes em quatro anos. O Ministério da Cultura refundado teve que lidar com tal herança complexa, mais que maldita, com suas intensas carências, fragilidades, debilidades, depressões, ausências, autoritarismos e instabilidades. Recriar o ministério em tais condições se tornou desafio de enormes proporções administrativas e políticas. O processo sugou energias vitais que poderiam estar sendo empregadas na criação e reconstrução de políticas culturais democráticas. 


O maior orçamento da cultura nasceu também de outra conjuntura paradoxal e complexa. Ela conjugou a pandemia e a guerra cultural da gestão federal anterior, que dilaceraram o campo cultural, mas que foram ambiente fértil para possibilitar a convergências de lutas, mobilização e organização visando enfrentar a brutal situação vivida pelos fazedores de cultura. Cabe lembrar que o campo cultural, paralisado pelas medidas necessárias de combate à Covid, havia sido excluído pelo presidente, de maneira deliberada, do auxílio emergencial geral proposto durante a pandemia. As lutas vitoriosas pelo apoio específico à cultura congregaram comunidade cultural, parlamentares e partidos democráticos engajados com a área da cultura; assessores parlamentares afinados com o tema; sagaz sensibilização da maioria do Congresso Nacional e mesmo a disputa entre partidos democráticos de esquerda pelo protagonismo na formulação e autoria das leis. Enfim, ampla conjunção de agentes político-culturais, que infringiram derrotas contundentes à gestão presidencial bolsonarista, com vitórias improváveis e difíceis de explicações simplificadas. 

 

O novo ministério na circunstância paradoxal

 

A conjuntura paradoxal, complexa e difícil de enfrentar, jogou o ministério, que estava sendo gestado, em um turbilhão de demandas, necessidades e solicitações nada fácil de atender. O enorme esforço, para além das forças institucionais existentes, exigiu uma trabalheira incansável: viagens e viagens, conversas e consultas, articulações intensas e necessárias, múltiplas frentes de atuação. Remontar todo o destruído e, simultaneamente, organizar as novas demandas está sendo uma empreitada complexa, trabalhosa, delicada e nada simples. A instalação dos comitês de cultura, afirmados reiteradamente pelo presidente Lula, exige imaginação, articulação e grande empenho. 

 

Dentre as múltiplas demandas da inovadora conjuntura paradoxal uma delas, para o bem e para o mal, assumiu centralidade: pensar, regulamentar, mobilizar e assegurar ampla participação dos entes federativos na implementação das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc II, derivadas das lutas político-culturais vitoriosas. A necessidade de implementar as leis durante o ano de 2023 se mostrou imperiosa. Impossível perder recursos em uma área sempre tão carente de verbas. Impossível não buscar envolver amplamente os entes federativos: estados, Distrito Federal e municípios na implantação e execução das leis, ainda que em um complicado federalismo cultural capenga, instalado em 2022, quando era crucial utilizar recursos da União de maneira federalista, mas sem deixar que ela se envolvesse nas deliberações, pois as atitudes antidemocráticas da gestão federal atingiam drasticamente os bens e serviços simbólicos. 

 

O processo em 2023 foi vigoroso, conforme atestam as quase universais adesões dos entes federados às leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc II. Garantir a capacidade da cultura em executar recursos conquistados é, sem dúvida, vital. Tais movimentos, sem menosprezar outras atividades, programas e projetos do ministério, assumiram protagonismo central em 2023. Nada surpreendente que a atuação relativa à lei Paulo Gustavo e à Política Nacional Aldir Blanc apareçam nas primeiras páginas da publicação, que resume as “entregas” do Ministério da Cultura em 2023. Nada casual a transferência da Conferência Nacional de Cultura, antes marcada para dezembro de 2023, para o ano de 2024.

 

Riscos para 2024: o fetichismo do dinheiro

 

Sem desconhecer as dificuldades e os méritos vividos em 2023, cabe apontar os potenciais riscos existentes no orçamento amplo. Pela primeira vez, o problema maior da cultura não é a quase eterna carência de recursos, mas seu volume, ainda que aquém do necessário. O problema decorre de riscos imanentes ao fetichismo do dinheiro.

 

Como perspicazmente formulado, o fetichismo do dinheiro esconde relações sociais entre seres humanos, submetidas à lógica da mercadoria, na sociedade capitalista. As relações sociais aparecem como que transformadas em coisas. Mais que isso, em coisas que têm vida própria e que dominam a dinâmica da sociedade. As coisas, sem mais, parecem comandar as vidas humanas. Os fetichismos da mercadoria e o fetichismo do dinheiro tornam-se poderosos fenômenos na sociedade capitalista. 

De imediato, o risco primeiro do fetichismo do dinheiro é ele dominar a agenda. Por sua atração e sua força, ele passar a comandar discussões e subalternizar, quando não fazer esquecer problemas, questões e políticas vitais de um novo projeto político-cultural para o ministério, a democracia e o projeto de país. Tudo reduz o debate público ao dinheiro: recursos, disputas, atribuições, distribuições etc. A potência gravitacional do dinheiro não é nada desprezível. Quando ele entra no jogo, ele adquire uma força invejável. Não se trata de questionar a necessidade imperiosa de verbas para a cultura e o desenvolvimento cultural. Trata-se, antes disso, de apontar os perigos da redução da cena político-cultural ao debate do dinheiro. Basta acompanhar algumas listas de discussão de movimentos acerca das leis recentes de apoio à cultura, hoje, para se dar conta do perigo. 

 

Outro risco, que aparece na agenda, de maneira substantiva, é presença de grandes orçamentos federais de cultura não como estimuladores de novos orçamentos estaduais, distrital e municipais de cultura, mas como inibidores deles. A onipresença de recursos federais pode, se não houver iniciativas políticas e mobilizações dos setores culturais nas mais diversas instâncias federativas, ocasionar uma retração dos orçamentos de estados, Distrito Federal e municípios destinados à cultura. Desse modo, o federalismo cultural capenga de 2022 se traduziria em um federalismo capenga, de outro tipo, de 2024 para adiante. Urge colocar em pauta o tema do federalismo cultural efetivo, com a implantação do Sistema Nacional de Cultura, que conforme a participação ativa dos entes federados, inclusive em termos orçamentários, e defina a atribuição das responsabilidades, que cabem a cada um deles. Federalismo cultural rigoroso e SNC são faces vitais do processo de democratização das culturas e da sociedade brasileiras e superação desse risco do fetichismo do dinheiro. 

 

A presença de orçamentos potentes pode ter outro efeito colateral perverso, esconder um dos graves problemas das culturas brasileiras: o modelo atual de financiamento e fomento à cultura de caráter antidemocrático e contrário à diversidade cultural. O predomínio do incentivo fiscal, com todas as deturpações que ele adquiriu no país, inibe a democracia e a diversidade culturais brasileiras, pois ele é altamente concentrador e voltado para apoiar algumas áreas culturais, mercantis ou consagradas. Além disso, é escandaloso que apenas por volta de 3% dos recursos mobilizados provenham das empresas privadas e a quase totalidade sejam verbas públicas, colocadas sob a deliberação privada. O aprofundamento da democracia e da diversidade culturais exige um modelo de financiamento e fomento à cultura, democrático e diverso, que seja tão complexo quanto a cultura e que contenha múltiplos mecanismos para lidar satisfatoriamente com os mais diferentes ramos das culturas. 


A absorção ocasionada pelo fetichismo do dinheiro, ao tentar aprisionar o foco do ministério no seu âmbito interno, congela as relações com seu entorno possível de conexões. A cultura sendo em si mesma transversal permite que o ministério se abra a políticas transversais de cultura com áreas sociais afins. Políticas públicas transversais, que mobilizem e beneficiem a cultura e as áreas parceiras, permitindo que o campo cultural ganhe alguma centralidade no projeto de governo e de país. Para isso, o olhar do ministério não pode estar preso às questões internas e restritas, que absorvam todas suas energias, por mais relevantes que sejam. Ele deve ser capaz de dialogar como áreas afins de governo e da sociedade para colocar a cultura como tema crucial do cenário brasileiro atual.

 

Perigo também decorre da atenção dada a articulação quantitativa da participação dos entes federados, por meio de adesões, subalternizando a discussão acerca da disputa político-cultural de valores, que hoje permeia a sociedade brasileira, por meio da guerra cultural bolsonarista. Ela deve ser enfrentada, sob pena do vazio político-cultural permitir persistência e mesmo ampliação de valores autoritários, neofascistas, fundamentalistas, intolerantes e antidemocráticos na sociedade brasileira. As políticas culturais precisam colocar com centralidade a questão democrática e a construção da democracia, da cidadania, dos direitos e da cultura democráticos. Não colocar na agenda pública do ministério a disputa político-cultural democrática de valores, em tempos de guerras culturais, que pretendem tornar adversários político-culturais em inimigos a destruir, explode como grave erro político para a construção e aprofundamento da democracia no Brasil. Tal erro não pode ser reproduzido. 

 

A centralidade da questão democrática e a conexão entre cultura e democracia devem ocupar agenda de 2024, inclusive porque disputas eleitorais vão colocar em cena o enfrentamento entre forças democráticas e antidemocráticas. O cenário em 2024 precisa ser equacionado de modo que todas as oportunidades da conjuntura paradoxal possam ser aproveitadas, sob pena de graves retrocessos político-culturais e orçamentários.

 

A conjuntura paradoxal em seu desdobramento para 2024 abre possibilidades de avanços em dois registros complementares. Eles se voltam, de modo distinto, seja para o próprio ministério, seja para o governo. Mas ambos visam aproveitar as oportunidades políticas abertas pela conjuntura paradoxal. O campo de cultura não pode desperdiçar tal instante singular de sua vida. 

 

Em uma dimensão mais específica, trata-se do fortalecimento político-institucional-programático próprio do campo e do Ministério da Cultura, por meio do desenvolvimento da democracia, cidadania, direitos, diversidades, territorialização, federalismo, transversalidade e disputas políticas-culturais de valores, que fortaleçam o protagonismo do ministério tanto no governo, quanto na sociedade. 

Em uma perspectiva mais geral, atenta-se ao aprofundamento da democracia no país, visando sua ampliação e sua consolidação, com a participação ativa da cultura, do campo cultural e do ministério, através da produção e difusão de culturas democráticas e de uma cultura política democrática, que permita à cultura, nesse horizonte, adquirir centralidade para a construção do projeto democrático de país. 

Em síntese, o enfrentamento político-cultural satisfatório da conjuntura paradoxal em 2024, após os ganhos e dificuldades de 2023, abre horizontes para fomentar a sempre almejada centralidade da cultura e a ampliação da democracia na sociedade brasileira. Ele guarda íntima conexão com tal possibilidade. Culturas e democracias ampliadas são vitais para a construção do novo Brasil.


Antônio Albino Canelas Rubim ou simplesmente Albino Rubim é um pesquisador, jornalista, professor universitário brasileiro. Ex-secretário de Cultura do Estado da Bahia.

 

Fonte: Site Teoria e Debate, Edição 240, Janeiro/2024. Disponível em:

https://teoriaedebate.org.br/2024/01/04/desafios-politico-culturais-para-2024/

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